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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A Propósito de Liberdade



Desde os primórdios da civilização, o ser humano sempre, lutou em favor de sua liberdade. O conceito de liberdade, na antigüidade, era muito restrito, pois todos os estados mantinham escravos: os derrotados, aprisionados, nas constantes pelejas que haviam entre os povos.
Mesmo os gregos, que foram o berço da civilização ocidental e os originários da democracia, mantinham escravos.Não eram, pois, uma democracia perfeita, pois a escravatura anulava todo conceito de liberdade. Muito menos os romanos pois os patrícios mantinham em suas casas e propriedades rurais, centenas de escravos,
Mas, o que é liberdade?
A questão da liberdade foi posta com clareza por Aristóteles, que depois de ter estabelecido, no seu Organon, a contingência de certos futuros , mostrou, na sua Ética a Nicômaco, que o mérito ou demérito podem ser atribuídos só a certos atos, que se é livre de executar ou não.
Mais tarde, Voltaire definia: A liberdade consiste em não se depender senão das leis.
Aqui entre nós, Rui Barbosa, em seu magnífico discurso sobre a liberdade, nos traz este belo e eloqüente trecho que tão bem se aplica aos dias de hoje: “Mas tu (liberdade) não és escada para o Poder: és, nas sociedades adiantadas, o elemento sagrado que o limita. Não te chamas dominação: chamas-te igualdade, tolerância, justiça. Não te entregas em monopólio a um predestinado, a uma religião, a uma parcialidade, a um sistema: existes uniformemente para todos, eliminadora do mal, fonte igual de luz, calor e prosperidade para o bem”.
Para nós, não existe melhor definição do que aquela contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); “É o poder de fazer tudo o que não for nocivo a outrem; assim, o exercício dos direitos naturais de cada um não tem outros limites além de aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites só podem ser determinados pela lei”. E acrescenta: “A lei só tem direito de proibir as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é proibido por lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena”.
Com base nestes conceitos, seria interessante fazer um cotejo entre as liberdades existentes em diversos países e as vigentes no Brasil. Comecemos pela Inglaterra. É a pátria dos grandes documentos constitucionais. Já em 1215 (mais de sete séculos atrás), o Rei João Sem Terra era obrigado a outorgar aos barões e à burguesia a Magna Charta, base das liberdades inglesas. É interessante mostrar aos nossos leitores algumas de suas provisões: nenhuma contribuição podia ser lançada sem o consentimento do Conselho do Reino; a liberdade do comércio era garantida e foram tomadas medidas para assentar a justiça em bases mais perfeitas, para proteger a vida, a liberdade e a propriedade de cada um contra espoliações arbitrárias. Foi a Magna Charta, praticamente, a criadora do Parlamento moderno, quando investiu 25 barões de grande autoridade para fazerem respeitar a Carta, que era lida, solenemente, duas vezes por ano, em cada catedral do Reino. Nela se estabelecia, definitivamente, a idéia de relações determinadas e escritas entre senhores e vassalos, entre os reis e os súditos. Outro documento importante é a Petição de Direitos, de 1628, imposta pelas Comunas a Carlos I, obrigando-o a reconhecer as liberdades nacionais. Tão arraigado o sentimento de liberdade entre ingleses que este Rei foi decapitado por desrespeitá-la. Vem em seguida um dos mais importantes instrumentos das liberdades individuais: o habeas-corpus, pelo qual ninguém pode ser preso sem culpa formada, instrumento este regulado pelos Habeas Corpus Act, imposto a Carlos II, em 1679. Segue-se a Declaração de Direitos, que Guilherme III, de Orange, teve que assinar em 1689, e que estipulava, entre outras coisas ,a reunião periódica do Parlamento, a votação do imposto e das leis, o direito de petição e a instituição do júri. Finalmente, o Act of Settlement, de 1701, que exigia o consentimento prévio do Parlamento para declarar guerra e, mais importante, impedia a destituição dos magistrados pelo rei.
Atentem os leitores para as datas de emissão destes documentos. O mais moderno tem mais de três séculos de existência. Estaria nesta época, a Inglaterra, livre de injustiças sociais? Teria sido eliminada a pobreza? Ao contrário, foi justamente o fortalecimento dos direitos dos cidadãos perante o arbítrio dos governantes que permitiu criar na Inglaterra uma sociedade próspera, democrática e, indubitavelmente, uma sociedade em que florescem, sem restrições, as liberdades essenciais ao ser humano.
Como conseqüência, os americanos, ao se tornarem independentes, em 1776, exigiram também, para si, os direitos tradicionais do povo inglês. São documentos mais que eloqüentes a Declaração de Direitos de Virgínia, de junho de 1776, a Declaração de Independência, de julho de 1776, e a Lei Federal de Direitos, de setembro 1789. Todos eles expressam de maneira clara e positiva as noções de liberdade legadas aos americanos pela gloriosa Albion. Cumpre notar também que, nesta época, os Estados Unidos eram, ainda, uma pequena e pobre nação.
Passemos agora à França. Apesar de latinos, não ficam os franceses atrás dos ingleses no seu amor tradicional à liberdade. Liberté, Egalité, Fraternité, foi o brado dos revolucionários de 1789. Aos constituintes franceses de 1789, devemos um dos mais belos documentos da humanidade, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, direitos estão qualificados “naturais, inalienáveis e sagrados”. Esta Declaração, que serviu de preâmbulo à Constituição de 1791, proclamava ao mundo o princípio de que os homens nascem e vivem iguais em direitos, não podendo as distinções sociais serem fundadas, senão sobre a utilidade comum e baseando os direitos do homem na liberdade, prosperidade, segurança e resistência à opressão. Todos os documentos e declarações franceses posteriores (1793 e 1843) sempre primaram pelo respeito às liberdades individuais, opondo-se aos Poderes absolutos.
Não se pode, pois, fazer uma análise das liberdades hoje vigentes nestes países, e mesmo em outras nações civilizadas do mundo ocidental, sem citar a origem e épocas em que elas foram adotadas. E, principalmente, para mostrar aos leitores que, ao contrário do que se diz, não é preciso primeiro erradicar a pobreza e as diferenças sociais para depois se chegar a um regime de liberdade, em outras palavras, à democracia. Ao contrário, repetimos, foi a adoção destes princípios que proporcionou e criou a base para que a justiça social se implantasse naqueles países e, mais do que isto, que o trabalho de todos fosse igualmente respeitado, para chegarem mais rapidamente ao progresso que hoje desfrutam.
É certo que não estamos mais na época de Montesquieu, mas seu O Espírito das Leis é tão atual hoje, quanto o foi na época de sua publicação, em 1748, se respeitarmos o sentido filosófico do seu pensamento.
Em resumo, encontramos na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na maioria das nações ocidentais, em pleno funcionamento, aquilo que Roosevelt chamou de as quatro liberdades: “A liberdade da palavra e da expressão, a liberdade do credo, a liberdade de estar ao abrigo das necessidades e a liberdade de viver ao abrigo do medo”. E é preciso não esquecer que foi para apoiar estes princípios que combatemos na Segunda Guerra Mundial contra a tirania do nazismo. Em suma, não há nestes países:
quaisquer restrições ao funcionamento do Parlamento;
censura ao meios de comunicação, aos livros e periódicos;
impedimento ao funcionamento da Justiça e à atuação dos magistrados.
Está, também neles, em pleno funcionamento, o instituto do habeas-corpus, e as pretensas ofensas aos funcionários do Governo não são rotulados como ofensas à segurança do Estado, porque, lá, governantes não são o Governo. Na França de hoje, L’État c’est moi é coisa do passado.
E no Brasil? Como anda o conceito de liberdade? Com a redemocratização do pais podemos dizer que, teoricamente, estão em funcionamento, todos os documentos por nos citados, e que foram conquistas das nações civilizadas. Dizemos “teoricamente” porque em pais com tamanha desigualdade de rendas , as leis não se aplicam igualmente a todos os cidadãos. E, principalmente quando se trata do tratamento do Estado em relação ao homem comum. Já dizia Hélio Beltrão : “Não basta assegurar a liberdade no plano puramente político, protegendo-se o cidadão contra a opressão do Estado. É preciso estende-la ao dia-a-dia do homem comum, onde a abertura significa protege-lo dos abusos da burocracia”. Começamos a discussão deste pensamento com as palavras do mestre Tristão de Athayde : “Somos um pais formado às avessas, que teve Coroa antes de ter povo; parlamentarismo antes de eleições; escolas superiores antes de alfabetização; bancos antes de ter economia”. Assim, “não é de estranhar-se que no Brasil a burocracia se tenha superposto à sociedade. Foi uma decorrência da própria. No caso brasileiro, a colonização constituiu um empreendimento do Estado, atribuído pelo governo português a pessoa de sua confiança, com o objetivo declarado de consolidar a conquista do território e propiciar benefícios econômicos à Coroa. Nenhuma semelhança, portanto com o que ocorreu em outras plagas, onde foi uma parcela do próprio povo que emigrou espontaneamente, com intenção de se fixar em outro lugar, onde criou suas próprias instituições. Nesse caso, foi a própria Sociedade que instituiu a Autoridade. Aqui, foi a Autoridade que fundou e moldou a Sociedade.”(Beltrão-1984:34)
No Brasil até hoje nada mudou, muito ao contrário, complicou-se. O tratamento dispensado ao contribuinte, diariamente, chega a ser ofensivo. Não adianta apenas fazer a reforma tributária – absolutamente necessária – mas temos que abolir a interferência do Estado no dia-a-dia dos negócios. O poder público não tendo capacidade para exercer a fiscalização normal, exige certidões e mais certidões para realização de simples negócios. Fazemos nosso o pensamento de Hélio Beltrão que, “a mórbida presunção da desconfiança, constitui a marca registrada das leis, regulamentos e normas que regem a Administração Pública.
A desconfiança no usuário, no contribuinte, no empresário é responsável pela alta tonelada de certificados, atestados certidões e outros tipos de comprovação sistemática e formal. Tudo isto é exigido porque na Administração Pública, ao contrário do que ocorre na nossa vida particular, é proibido acreditar nas declarações das pessoas, embora se saiba que tais declarações são, em sua maioria verdadeiras, e não obstante a declaração falsa constitua crime expressamente previsto no Código Penal.
No Brasil em vez de se colocar o falsário na cadeia, obriga-se todas as pessoas a provar com documentos, que não são desonestas. Com isto, pune-se o honesto sem inibir o desonesto, que é especialista em falsificar documentos. Os atestados falsos são, em geral, os mais perfeitos. As prestações de contas fraudulentas também são, na aparência, as mais perfeitas. Não basta praticar a democracia e assegurar a liberdade política. A grande liberdade se constrói a partir de uma série de pequenas liberdades e da garantia de uma soma de pequenas coisas: O direito à credibilidade e à dignidade; o direito de não se ver empurrado de uma fila para outra, apenas para provar que não se está mentindo ou para receber um serviço ou um benefício legalmente devido; o direito de não ser oprimido pela burocracia.”( Beltrão -!980-1)
E vamos alem. Sem uma justiça acessível ao homem comum, aplicada com razoável rapidez, não se pode falar em liberdade ou democracia. O pior julgamento é aquele que não acontece. Executivo, Legislativo, Judiciário. Esta divisão de poderes é a base de uma democracia moderna. Mas, o pilar fundamental, o ponto de equilíbrio para o bom funcionamento de todo sistema é, sem dúvida, o Judiciário. A quem deve o cidadão recorrer contra os abusos e violências do poder? A quem cabe interpretar as leis, dando-lhes direção correta, retirando-lhes as inconstitucionalidades? Esta enorme soma de responsabilidades cabe ao Poder Judiciário. O que é o Judiciário de uma nação democrata? Respondemos sem medo de errar: O Judiciário são os juizes. Talvez não exista ofício mais importante, com maiores responsabilidades, do que aquele de julgar. E quando o julgamento é sobre seres humanos, então a responsabilidade não tem limites. Assim, ousamos dizer que a qualidade, a independência, o respeito ao Judiciário pelos cidadãos de um país, mede-se pelas qualidades, pela independência e pelo acerto de seus juizes. Esta a pedra angular do bom funcionamento do Judiciário.
No momento em que os holofotes apontam para o Judiciário, nas discussões sobre sua reforma, é preciso que algumas considerações sejam feitas. É preciso notar que o juiz só pode e deve julgar de acordo com as leis, os códigos de processo, enfim, de acordo com o ordenamento que o legislador lhe ofereceu. Não cabe ao juiz elaborar leis. Cabe cumpri-las e interpretá-las. Os brasileiros, com razão, exasperam-se pela delonga dos processos, com o formalismo de nossa justiça. A respeito dessas formalidades, o ilustre Ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, comenta que “a forma de nossa escrituras públicas é, até hoje regida pelas Ordenações Filipinas. Inúmeros termos, compromissos e formalidades forenses constituem sobrevivência das Ordenações do Reino de Portugal. E a forma dos editais, precatórios e rogatórios, reflete a linguagem de D. João VI”.
O congestionamento do sistema judiciário é evidente. O Supremo Tribunal Federal – cúpula do sistema – recebe por ano cerca de 20 mil processos para exame e discussão. O advogado perde seu tempo com o cumprimento de meras exigências formais.
Além disto é difícil, afastar de certos juizes a empáfia e a arrogância, sua posição olímpica em relação à sociedade, cheios de si pelos “excelência”, “meritíssimo” e “máxima data vênia” que exigem no tratamento a eles dispensado. Também não conseguimos anular os laivos ideológicos que alguns trazem de sua formação, como vimos, recentemente, na pletora de liminares concernentes ao processo de privatização da economia. Causa, também, apreensão o jacobinismo de certos membros do Ministério Público. Estes jovens procuradores, em muitos casos lançam-se a um denuncismo vago, seguidos de sequiosa vontade de aparecer na mídia. Periga acabarem como Robespierre...
Grande exemplo nos vem do Estado do Pará, com a criação dos Juizados Especiais Itinerantes, em que o Juiz e sua equipe se deslocam até as longínquas localidades, para colocar a Justiça ao alcance dos cidadãos. É isto que o cidadão quer. Que o Juiz não fique só discutindo com o processo. Que solucione os casos. O cidadão comum quer entrar na sala do Juiz, reclamar contra a injustiça sofrida e ver seu caso resolvido. Quer, como a lei manda, que o Juiz resida na comarca, e não que apareça lá de vez em quando... O que estamos vendo, e as recentes comissões de inquérito do Congresso mostram, é a necessidade de a sociedade ter algum controle sobre o Judiciário, mas que este controle jamais afete a independência dos juizes julgarem. Na Suécia, por exemplo, isto é facilmente resolvido, pois lá há o “Ombudsman”, ou Corregedor Geral, que embora não lhe caiba reformar sentenças judiciais, pode considerar faltoso um juiz e aciona-lo. Isto já aconteceu várias vezes.
Mas, acima de tudo, os juizes precisam também compreender que eles devem à sociedade prestação de contas de seus atos, de seu comportamento. Isto é o que se espera em uma nação em que o contribuinte é o poder mais alto.
Infelizmente, nas discussões que se estão travando, no Congresso, a respeito de mudanças no Judiciário, periga nada reformemos, tal o choque de interesses e corporativismo que estamos, tristemente, presenciando. Parece até que estamos ouvindo Lampedusa em seu O Leopardo: “Modificai, modificai, para que tudo fique como está”.
E, para terminar esta dissertação, a respeito das liberdades, da posição do indivíduo perante o Estado, gostaríamos de deixar à meditação de nossos leitores e dos que nos governam esta passagem magistral do grande Papa João XXIII em sua encíclica Pacem in Terris: “A pessoa humana como tal não só não pode ser considerada como mero objeto ou elemento passivo da vida social mas, muito pelo contrário, deve ser tida como sujeito, fundamento e fim da mesma”.

Bibliografia:

BELTRÃO, Hélio, Burocracia e Desenvolvimento, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 jan. 1980. Caderno Especial
Descentralização e Liberdade. Ed. Record, 1984



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